sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O acalentável triunfo futuro

Não foi preciso muito esforço para encontrá-la. As opções não eram muitas e seu choro abafado, vindo do final do corredor, era gritante em mim. Já passava de uma hora da manhã e todos dormiam, exceto a garota. Passei em frente ao quarto de seu irmão, espiando pela pequena fresta, ele dormia e roncava na mesma proporção, profundamente. Será que sonhava solenemente, ignorando a realidade? 
No quarto ao lado estavam seus avós; parei em frente à última porta branca, receando assustá-la. Precisava ganhar sua confiança e crença de súbito, pois não sabia quanto tempo ainda teria. Abri a porta cautelosamente, adentrando seu quarto, ganhando sua atenção. 
A luz advinda da televisão iluminava o ambiente o bastante para me fazer enxergar os detalhes. De imediato, meu olhar foi atraído para as prateleiras embutidas na parede que ladeavam a cama. Alguns livros infanto-juvenis, meia dúzia de bonecas que indicavam vestígios de uma infância largada, embora bem vivida, e alguns porta-joias. A agenda do ano estava aberta em cima da escrivaninha, ao lado do laptop. Provavelmente usara os dois havia pouco. Não precisei ler os escritos para entender a situação. Eu sabia de tudo.
Após incontáveis segundos redescobrindo o ambiente, notei que meu silêncio impactava sua falta de ação. É claro, sua curiosidade não era páreo para a cautela, não naquela situação. 
'' Não. Grite. '' um passo; ''É exatamente o que você está pensando''; mais um, ''Você não está ficando louca, eu acho. Brincadeira, não está não''.
Tinha apenas treze anos, altura de dez, e um cabelo mal resolvido. Fitá-la consternava-me e a estarrecia. Mas precisava ser sólida no que fui fazer. Sentei-me devagar a sua frente na cama, estava pronta para falar-lhe quando fui interrompida no ar.
''Só pode ser brincadeira... Não sei e não entendo o que você faz aqui, no meu quarto, mas vai me falar!'' - era levemente engraçado perceber sua ansiedade e firmeza, o assombro estava sendo superado afinal, mas a dúvida da minha presença ainda era volátil.
''Gosto desses livros, sabe? - falei apontando para as prateleiras - Ainda me fazem rir, a propósito, o décimo primeiro será lançado ano que vem, mas não vou te dar spoiler. Bom, não sobre isso.''
''Você está brincando que leva esse tempo todo pra série terminar .'' Ela entendeu minha deixa, sabia que precisávamos de um ponto em comum, mas espera...
''Ei, quantos anos você acha que eu tenho, por acaso? E, bom, a série termina daqui a dois anos, esse é apenas um livro extra. E tenho dezenove, a propósito.''
Tentei manter um ar majestoso ao anunciar minha idade, apenas para ela ter uma boa impressão. Queria ansiá-la a meu respeito, acirrar suas expectativas.
''Eu ouvi o seu choro, estava passando aqui perto e resolvi entrar - não era bem verdade, estava a milhas de distância desse momento - tem algo que você precisa saber.''
Absorvi seu silêncio em troca da minha seriedade, o enjoo no meu estômago era um reflexo de compaixão. Estar ali era perigoso para nós duas, mas eu não tinha a pretensão de alterar a sucessão dos fatos, só precisava amenizar sua dor.
''Você morreu? É assim que está aqui agora? Ou, não sei, talvez tenha acontecido algo grave onde está...''
''Não, não! Muito pelo contrário, nunca fui tão voraz de vida quanto agora, no entanto, você nunca foi tão opaca. Escute, eu leio suas lágrimas, e cada uma me traz gritos diferentes. Podia dizer para não chorar mais, mas prefiro que chore até secar seus lamentos, até que teus medos se devorem e cedam a tua vastidão. Ei, menina, olha pra mim! Não sou de tamanho que se possa enxergar, percebe? Meu batom vermelho não condiz com pouco mais de metro e meio, e nem esse rosto que pouco aflige, mas, aqui e agora, eu carrego a tua solidão, e o peso do teu vazio não me assombra mais. Minhas feras se venceram e quando o fortuito do Destino me morde, não estanco nem penso em fugir. Desafio e o convido a me assistir, com toda graça de um sorriso que rosna. Você há de aprender a singeleza do consentimento, sem, no entanto, resignar-se ou acomodar-se, também se briga em silêncio.''
Sua feição ávida de perplexidade me instigava a continuar, mesmo sabendo que ela tampouco compreendia minha mensagem.
''Perdoe-a quando ela voltar. Perdoe todos os que vierem a te abalar, e liberte a si mesma dos males que ameaçarem fincar. Eu sei, não me olhe assim, como se eu desconhecesse o leão que atiça tuas entranhas e te insurge numa clareza brusca. Ele é tão óbvio que o supervaloriza como um desafio, e assim o é. Mas não será perene. Ah, você nem imagina o quanto será leve, sem grilhões invisíveis que te impeçam o voo. Mas vai prender-se por vontade despercebida, e tuas asas serão, então, âncoras.''
''Não se engane, minha confusão é proposital, tanto como benigna. Ouço teus batimentos compassados, enfim, mas não é tempo de descrer ou cansar. Ouça-me, não te digo como, mas enxergarás o mundo sem precisar desbravá-lo todo. Logo acordará, a tempo de começar a sentir o sol como nunca dantes. Não posso contar-lhe os pormenores, porque mesmo eu desconheço os detalhes divinos; mas tenho fé e história para dizer-te com propriedade o que hei de revelar: o amor que cabe a ti está passando pela porta. Perdoe-me, não bem esta aqui prostrada. Mas adentrou essa vida, e em meados de já vocês hão de se esbarrar. Não se preocupe, você o sentirá antes de reconhecê-lo. Serás indelével na fé também, porque ele acalenta teus receios, os faz dormir, e despe tua coragem de adornos. Condensa tudo que há em ti, tornando mistas as tuas bondades e acrescendo nas falhas. E mesmo no pranto, verás como é belo o seu modo de existir, contemplando sua presença ao teu lado.''
Pude notar com prazer que consegui plantar a semente verde da esperança. Seu arquejo incontido me fez sorrir.

''Se não ouvisse essas palavras vindas de alguém...de você, nunca acreditaria que minha vida pudesse sair desse limbo atual.'' Suas lágrimas retornaram, mas não eram mais de frustração ou desespero, e sim de alívio. Complacente, pousei minha mão em seu ombro. Foi o mais próximo que pude chegar, e mesmo esse mero toque gelava a minha espinha dorsal. 

''Ela vai voltar? Minha mãe.''
''Vai, sim. Aqueles que amamos nunca se vão de nós. São como árvores, cujas raízes crescem no nosso interior. E mesmo que se corte o tronco, ou que não gere mais frutos, ela ainda haverá de crescer. ''
''Farei amigos? Como aqueles que frequentam o mesmo colégio por anos a fio e sabem tudo um do outro. Desses que nunca pude ter, por sempre mudar de colégio, casa, cidade. Não vejo como alguém possa me entender ou ajudar, não aqui nessa cidade. ''
Oh, essa doce parte da história! 
''Amigos? Você não os fará, os descobri-los-á. Acredite-me, aqui será teu porto pra onde há de regressar por puro afago. Serão amizades puras, de entrega. Vais perceber que cada pessoa no mundo é seu próprio livro, com mistérios e revelações. Ah, eles serão como um acalento nos dias leves, e soprarão teus sonhos te alçando como um balão. Mas, mesmo quando chegarem os tempos de saudade, verás como é linda a liberdade. Não estarás sozinha, fardos serão compartilhados e mesmo as alegrias distantes te alcançarão. Seus amigos percorrerão toda estrada ao seu lado.
Por mais delongas que tenha me permitido, não me esquecia do tempo fugidio, embora seus questionamentos fossem válidos.
''Escute, aproveite a individualidade, é uma flor imposta a todos, mas não floresce sem luz própria. Descobre-te e desvenda outros mundos, tenha fome das palavras. Serão cama, asas, espadas e tudo que ainda há de permiti-las ser. E tenha esperança, tudo se pacifica.''
Ouvi ao longe uma voz me chamando e sabia que era hora de partir. Levantei-me indo em direção à porta, e ouvi sua última súplica.
''Ao menos me diga o nome dele, desse que você diz ser o nosso amor.''
Virei-me de frente para o meu eco do passado, encarando-me com uma graça orgulhosa e a boca formigando para enunciar um nome doce. Afinal, conheci tantos cujos nomes eram iguais ao dele, que não revelaria sua real identidade assim. 
Abri os lábios formulando minha palavra preferida, mas fui contida pelo fim de minha demanda.
Senti os lábios dele ao pé do meu ouvido sussurrando meu nome, me trazendo de volta para o presente.
''Estava sonhando?''
''É, sonhando com o som do seu nome. '' Seus braços acirraram ao redor da minha cintura. E um sorriso preguiçoso e torto nasceu em sua boca, sendo calado na minha.
O nome dele ficaria no ar, então, mas em breve deixaria de ser oculto. Não me salvei das minhas angústias passadas, nem pretendia me resgatar dos caminhos turbulentos, mas precisei voltar ao resguardo das memórias para lembrar-me da vastidão da existência. Ensinar-me mais uma vez, que a serenidade é o equilíbrio entre os extremos.  


Bruna Almeida

2 comentários: