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terça-feira, 20 de outubro de 2015

Missa de primeiro dia, às últimas horas do semestre

Há qualquer coisa de comum lá fora, enquanto outra dimensão acontece nesta sala de aula. Estamos todos envoltos por sua atmosfera inquietante. Me pergunto quão multifacetado ele ainda pode vir a ser, pois, mais um desses olhares, e serei absorvida. Juro que serei. Não olhe para cá agora, apenas continue a encarar outro alguém – rezo. Estou pisando em nuvens, e minha mente está em todos os Tempos.
Percebo que nosso pequeno círculo é, na verdade, uma corrente de oração. Cecília, a meu lado, está quase saindo do corpo, mais um pouco e poderei ver seu próprio espírito levitando pela sala, sem que, ao menos, se dê conta. Eu lhe entendo, Cecília, lhe entendo. Oh!, pobre de nós tão crentes, que temos fé em Poesia; nem orem por nós, Realistas, já estamos à margem de vosso reino. Ser poeta é que é o pão de cada dia.
Não penso mais há quanto tempo estou aqui, sei apenas que, me desencontro a cada instante. E por perder-me é que vou me reinventando. Sem fim, a mudança me rompe por dentro, não paro de nascer para o mundo. Sinto meus olhos úmidos, então; vejo o sol adentrando o recinto e quase choro. Porque é lindo, e o enxergo pela primeira vez na vida, com olhos de criança, que só pescam essência. Fito as cores, elas me invadem, gritam, alarmam. O vermelho da blusa de Henri, o amarelo das carteiras, a tinta preta desvendando mistérios no contraste branco do quadro.
Henri me instiga, se mexe com uma graça atípica de quem sabe Ser, carrega a segurança da própria leveza, se expande tanto, que ocupa quase todo o ambiente. Mas me deixa aqui um espacinho, deixa que eu assista suas cenas, Professor, pois também estou em oração, e já não creio em mais nada de outrora. Mal sei onde deixei meus resquícios, desde que passei por aquela porta. Seus olhos pairam ao redor de cada aluno presente, e noto que é hora de consentir; ‘’a poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica’’, diz ele, enquanto lê ‘’O arco e a lira’’. Sinto que meu espírito se eleva enfim, não respiro, não pisco, e estou plena.
Há unanimidade neste momento, os fiéis dão-se as mãos para a grande revelação. Prece, estamos em prece, compreende?! A energia que me perpassa, eu repasso, logo, estamos em conexão profunda, e quase na condição de Um experimentando o novo mundo. A nova verdade. Pois Henri reflete o saber, já está em outro plano, mas nos concede sua mão livre para nos impulsionar além. A mão esquerda segura sua bíblia, e a sentença final provém de sua voz gutural.
‘’ O universo deixa de ser um vasto depósito de coisas heterogêneas. Astros, sapatos, lágrimas, locomotivas, salgueiros, mulheres, dicionários, tudo é uma imensa família, tudo se comunica e se transforma incessantemente, um mesmo sangue corre em todas as formas, e o homem afinal pode ser o seu desejo: ele mesmo.’’
Ouça!, é a chave para os segredos do universo. Vejo Henri mordendo o lábio inferior, está degustando a própria leitura, e então, sei que estamos em perfeita comunhão. Não pertenço mais a outro plano. Ele,eu e toda a sala estamos sim em sincronia, como quem mergulha em águas límpidas e se molha da cabeça ao último batimento cardíaco. 
‘’A poesia leva o homem para fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao ser original: volta-o para si. O homem é a sua imagem: ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem – esse perpétuo chegar a ser – é. A poesia é entrar no ser.’’
Silêncio.
‘’Palavra da salvação’’, finda o Professor.
‘’Glória a vós, senhor’’, cantamos em resposta, pois enfim, fomos salvos.

Fez-se luz em mim, e ainda é o primeiro dia. Henri me fita como quem sabe do que está acontecendo. Ele acendeu as palavras, e a Poesia floresceu.


Bruna Almeida

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