sábado, 6 de outubro de 2018

Coração a bem batendo


Eu canto porque o instante
resiste
e a vida se faz completa
Com os olhos em água
jorro cristalino de ti
em mim
O instante resiste
Com o tilintar da risada infantil
clarão doce de céu na terra
Doce
tudo que foi passo, jamais passado.
O êxtase sereno dos momentos ínfimos
o aroma da pele e o esbarrar dos cílios…
tua boca em lua! e meus olhos em sol
para ti
O êxtase sereno do fim da tarde
suspende o mundo em calmaria
para paz irradiar
Luz que rasga o véu vem devorar o céu
a sala a casa a vida
E eu
em sinestesia, vou vivendo de mansinho
guardando em mãos passo - peixinho
sem rede nem vara, encaro espelho d’água
e lá no fundo me vejo
com os peixinhos a nadar.
Entrego o que de mar é do mar
em mim, em águas límpidas danço
o vagar das ondas
Nunca mais perder, nunca mais partir
de ti.
Eu canto porque o instante
resiste
e a vida está completa.
Não quero avisos nem alarde
Porque eu vou e sou
as ondas do mar.
Eu vivo
para pele arrepiar.

Meridiano

Entre todos os tempos está o paratempo – saída de emergência para os desesperados, morada secreta dos fugitivos, lar doce para além daqui. É o Tempo paraquedas, vide queda em todos os sentidos: escorregão, tombo, salto no ar, enamorar-se por algo ou alguém. No meu tempo-lugar escondo os tesouros da casa em cubinhos, projetada a priori por Kunio Katō, tudo que garimpei e foi caminho, foi passo jamais passado.


Ouvi dizer, por fontes confiáveis, que o poema constrói uma redoma de silêncio. Mais além, Leminski cruzou meu caminho e avisou ‘’o que a gente sente e não diz, cresce dentro.’’. Incapaz de construir o poema, ergui o silêncio das palavras ditas sem voz.


É isso, então! Pensei. Crescer dentro. Enveredei nesse arquétipo de jardim da vida. Para chegar lá basta permanecer imóvel, de olhos fechados (mas respirando!!) até que, suavemente, o corpo relaxe e o espírito alcance a linha do mundo sensível. Dito isso, agora já é possível entender como atravessei quilômetros em poucos minutos, ultrapassei fronteiras estaduais ao sugir na casa 7, da rua 4, em plena madrugada adormecida. Plena, enquanto a lua brilhava como um farol pela janela de vidro acima do sofá branco.


Eu o notei dormindo ali, num sono tão sereno que meus olhos o guardaram, em vigília, como explicou Antônio Cícero:



‘’Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-lá, mirá-la por


admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.’’





Guardei-o no silêncio sereno do meu arquétipo de tempo-lugar, nos meus olhos, como a um toque mais íntimo do que a própria pele permite. Mirando uma extensão desse instante, segui pela lateral do sofá, onde ele dormia, até me posicionar atrás de seu corpo, e deixei que minhas mãos pousassem sobre seus olhos, janelas de sua própria alma.


Na penumbra da lua, debaixo do céu imenso, suas mãos seguraram as minhas, afastando-as para me reconhecer. No nosso entendimento mudo, minhas mãos em seu rosto, as dele no meu, entendi Paz. O silêncio é mesmo o reino das revelações.


Aquele foi o Tempo dos tempos, a união de passado, presente e outra coisa, outra coisa ainda, que plana pelo ar, pesando a leveza sentida em tudo que é livre para existir. Traçou-se outra linha, com os nossos olhos, juntos, unos, no meio do caminho, no meio da vida. A consagração do instante, também disse Paz.


Consagrado. Sagrado. Como o ‘’milagre que as raízes tecem, em silêncio, no escuro.’’.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Achados de gaveta...

As ruas da cidade se abriam, enfim. Todos os demais seres se esconderam em próprios sonos profundos. Estávamos imunes dos outros, quem quer que fossem, se escondiam.
Acordei num conversível antigo, do tipo elegante e clássico, nada possível de denominação, vide a minha falta de conhecimento sobre. Miguel, ao meu lado, dirigia, relaxado, respeitando os sinais de um trânsito nulo. Me lembro daquela conversa futurística, em um passado distante, onze anos tínhamos à época, imaginávamos que ''meu Deus, que perigo quando você dirigir...''. Era então uma ideia tão distante. Não dirigir, propriamente, mas todos os anos que nos levariam juntos até esse instante. 
Sorri ao apreender o momento. Era tarde da noite. Fazia lua no céu, e ele fazia sol, ao meu lado. Pensei em perguntar qual era nosso destino, mas eu sabia que não haveria uma resposta, embora, à frente, as avenidas se alargassem, se entapetassem de gentilezas, dizendo ''pode passar, por favor''. E era noite, madrugada adentro, mas eu enxergava com clareza.
A lua cheia, reluzente, tão grande que parecia estar logo ali à frente. Lua que ascendeu pra iluminar a nossa fuga. Eu o olhei mais uma vez, acariciando seus traços com olhar, ora homem, ora rapaz dos nossos quinze anos.
Eu me encobria de confusão sem perceber que, era de fato, uma escapatória, aquela planejada à cada despedida. Fechei os olhos, trapaceando meu próprio refúgio que eu tampouco me apercebia. Se eu sonhar, isso não precisa acabar, cheguei a pensar, como quem corre pra guardar um anel de ouro na caixinha de jóias, para não perdê-lo.
E dali mesmo, das minhas pálpebras cerradas, pude vê-lo parar de assobiar e sorrir da minha inocência, como quem diz ''eu disse que esse dia chegaria, você duvidou que eu viria te buscar?"'. Mas será? 
Ele segurou minha mão como quem me guardava, também, mas sem segredos, porque estar ali já era encoberto, afinal. Suspirei e cedi.
 Vamos, então. 
Ele cintilava sob o luar; eu mirava aquele ora homem, ora moço e ratificava Dom Casmurro, ao pensar que ''aos quinze anos é tudo infinito''.